Universidade Federal do Rio de
Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências
Humanas
Faculdade de Educação
Curso de Pedagogia
Disciplina Didática da Língua
Portuguesa – EDD361
Professor Doutor Marcelo Macedo
Corrêa e Castro
Aula: Os silêncios
Texto 1: O animal que fala
(Anthony Burgess)[1]
Em grego chama-se o homem de zoom phomanta, animal que fala. O que
diferencia a humanidade dos seres irracionais é sua capacidade de construir um
sistema de signos audíveis para representar não só suas ideias e sentimentos
sobre o mundo exterior como também o próprio mundo exterior. Alguém logo dirá
que certas aves falam, e algumas muito bem, como os mainás. Que se pode ensinar
aos chimpanzés algumas palavras e umas poucas estruturas simples. Mas só os
seres humanos distinguem-se pela faculdade de criar línguas inteiras, e não
apenas imitar partes delas ou manipular um pequeno número de substantivos e
verbos. Quando um animal começou a falar, este animal se autodenominou homem.
Todostemos uma ideia vaga, e
totalmente falsa, de um homem muito primitivo emitindo grunhidos e uivos como
Tarzan, enquanto acompanha a melodia rude desses vocábulos com um martelar de
golpes na caixa do peito. Mas é quase certo que a linguagem humana não começou
assim. Começou como uma algaravia contínua, e provavelmente na escuridão. A
escuridão é sempre assustadora, especialmente quando se está só, e o homem
aprendeu muito cedo a preservar o sentido de sociedade, a convicção
tranquilizadora de não estar só quando o sol já se pôs, a lua ainda não surgiu e
a caverna está às escuras. A fala, sem dúvida, precedeu a descoberta do fogo.
Ainda costumamos usar a palavra, não para transmitir mensagens ou expressar
sentimentos, mas para estabelecer e manter o contato humano.
O antropólogo Malinowski
chamava esse tipo de discurso social de “comunhão fática”, do grego phatos, falado. O ato da fala, do
discurso, tem como primeira finalidade a sociabilidade. Não precisa ter um
significado, mas sim ser contínuo. Numa reunião social nada é mais embaraçoso
que o silêncio prolongado: parece demonstrar que a sociabilidade falhou, e é
quase sempre quebrado por mais de uma pessoa, todas falando ao mesmo tempo –
desculpe-me – perdão – fale você – não, você primeiro – e o que se diz tem
muito menos importância do que o fato de alguém ter dito alguma coisa, qualquer
coisa. Todos suspiram aliviados.
Não temos meio de saber como
era a linguagem, por exemplo, do homem da Idade da Pedra, mas sabemos alguma
coisa dessa língua antiga, o indo-europeu ou ariano, pois sua estrutura e parte
do seu vocabulário, muito mudados, sobreviveram nas línguas que dele descendem,
entre as quais se encontra a maioria das línguas europeias. O indo-europeu
parece ter sido uma língua complexa, gramaticalmente rica, muito diferente do
malaio ou do chinês, e não há dúvida de que quanto mais retrocedemos no estudo
linguístico, mais complexidade encontramos.
(...)
Temos de confessar que
ignoramos quase por completo as origens da linguagem humana, mas sabemos que o
processo evolutivo é responsável pela espécie que chamamos homem. E quando a
linguagem surgiu já estava em pleno desenvolvimento: não era um tatear
hesitante para chegar a uma maior articulação. A simbolização do mundo exterior
(que abrange nosso próprio corpo) foi a chave da criação de mundos interiores –
ciências e tecnologias. A linguagem é nosso bem mais precioso. Seria sensato
refletir sobre seus mistérios e apreciar o milagre que ela representa. Mas
nunca chegaremos a compreendê-la. O chinês, o hindi e o inglês, sim. A
linguagem, não.
Texto 2: Direito ao silêncio
(Frei Betto)[2]
Há demasiados ruídos à nossa
volta. O coração sobressalta, os nervos afloram, a mente atordoa-se. É o
televisor ligado quase o tempo todo, o fluxo incessante de imagens sugando-nos
num carrossel de flashes.
O rádio em monólogo inclemente,
a música rítmica desprovida de melodia, o som alojado nos orifícios auditivos,
o telefone trinando supostas urgências, o celular a invadir todos os espaços,
suas musiquetas de chamada destoando em teatros, cinemas, templos, cerimônias e
eventos, seus usuários nele dependurados pelas orelhas, publicitando em voz
alta conversas privadas.
De todos os lados sobem ruídos:
da construção civil vizinha, do latido dos cães, dos carros na rua e das
aeronaves que cortam o espaço, das motos estridentes, do anunciante desaforado
em seu carro de som, do apito fabril disciplinando horários.
Tantos ruídos causam tamanho
prejuízo à saúde humana que o exército usamericano
criou, em sua sanha assassina, um arsenal de “projéteis sonoros”, capazes de
produzir sons de 140 decibéis. Bastam 45 para impedir o sono. O rumor do
tráfego na esquina de uma avenida central atinge 70 decibéis. Aos 85, produz-se
uma lesão auditiva. Elevado para 120, o som provoca dor aguda nos ouvidos.
Imagine-se, pois, o que significa essa tecnologia de tortura a 140 decibéis!
Nosso silêncio não é quebrado
apenas por ruídos auditivos. Agridem-nos também os visuais. Assim como o
silêncio da zona rural ou de uma igreja nos impregna de paz, levei um choque ao
visitar, anos atrás, Praga antes da queda do muro de Berlim. Não havia
outdoors. A cidade não se escondia atrás de anúncios. A poluição visual era
zero, permitindo contemplar a beleza barroca da terra de Kafka.
Nas cidades brasileiras,
subjugadas pelo império do mercado, somos vorazmente engolidos pela
proliferação de propagandas, exceto a capital paulista, agora em fase de
despoluição visual por iniciativa da prefeitura.
Sem silêncio, ficamos
vulneráveis, expostos à voracidade do mercado, a subjetividade esgarçada, a
epiderme eriçada em potencial violência. Contra esse estado de coisas, o
professor Stuart Sim, da Universidade de Sunderland, na Inglaterra, acaba de
lançarManifesto pelo Silêncio. Sem
ele perdemos a nossa capacidade de raciocinar, ouvir a voz interior, aprofundar
a vida espiritual, amar além do jogo erótico meramente epidérmico.
Quando um casal de noivos me
procura, interessado em preparar-se para o matrimônio, costumo indagar se os
dois são capazes de ficar juntos uma hora, em silêncio, sem que um se sinta
incomodado. Caso contrário, duvido que estejam em condições de uma saudável
vida a dois, pois o respeito ao silêncio do outro é um dos atributos da
confiança amorosa.
Assisti ao filme “O grande
silêncio”, do diretor alemão P. Gröning, que nos convida a penetrar a vida de
uma comunidade cartuxa[3]
nos Alpes franceses. Nenhuma palavra no decorrer de três horas de filme, exceto
o canto gregoriano das liturgias monásticas e o bater do sino. Um convite à
mais desafiadora viagem: ao mais profundo de si mesmo.
Quem ousa, sabe que lá se
desdobra um Outro que, por sua vez, espelha nossa verdadeira identidade. Viagem
que tem como veículo privilegiado a meditação. Na fase inicial, é tão árduo
quanto escalar montanha para quem não está acostumado ao alpinismo. Porém, em
certo momento, é como se u’a mão invisível nos elevasse, tornando a subida
suave e agradável.
Só então se descobre que, no
imponderável do Mistério, não se sobe, se desce, mergulha-se em si mesmo para
vir à tona, do outro lado de nosso ser, naquele Outro silenciosamente presente
em nossas vidas e na tessitura do Universo. Aqui a palavra se cala e o silêncio
se faz epifania.
Texto 3: O Silêncio (Abigail VasthiSchlemm)[4]
Eu sou pintora. Só pintora. Eu
pinto só o que gosto. Nunca pretendi interferir, nem remotamente, nos destinos
da humanidade. Com a minha arte somente procuro a beleza e poesia possíveis.
A minha pintura não me encaixa
em escolas. Uso, sem cerimônia, todas
as técnicas e todos os recursos utilizados por todas elas. Mas, mesmo assim,
pinto de modo pessoal e verdadeiro, sem abrir mão da minha criatividade, do meu
prazer e da minha liberdade.
Meus temas, eu os pesco na
minha própria história, na minha mitologia particular, nos meus rituais
domésticos, ou em alguns momentos, vividos e perdidos ao longo do tempo. Meu
trabalho é um conjunto de formas e cores que, embora nada diga de novo, traz em
si, como num ponto de interrogação, um silêncio pesado, uma pergunta não
respondida.
Minhas personagens, às vezes,
se confundem comigo. São concentradas, quietas, caladas, fora do ar e do tempo,
como quem já não espera. Quase sempre estão de costas para o mundo. Seu
universo é pessoal.
Mas elas são instigantes,
envolvem, provocam, seduzem. Seu silêncio é profundo, patético e profético.
Seu silêncio é o silêncio que
denuncia a ausência das mulheres na história da humanidade.
Texto 4: O Silêncio (Arnaldo Antunes)[5]
antes de existir tevê existia luz elétrica
antes de existir luz elétrica existia bicicleta
antes de existir bicicleta existia enciclopédia
antes de existir enciclopédia existia alfabeto
antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão de semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
homem pedra planta bicho flor
luz elétrica tevê computador
batedeira, liquidificador
vamos ouvir esse silêncio meu amor
amplificado no amplificador
do estetoscópio do doutor
no lado esquerdo do peito, esse tambor
Texto 5: Certas
Coisas (Lulu Santos e Nelson Mota)[6]
Não existiria som
Se não houvesse o silêncio
Não haveria luz
Se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...
Cada voz que canta o amor não diz
Tudo o que quer dizer,
Tudo o que cala fala
Mais alto ao coração.
Silenciosamente eu te falo com paixão...
Eu te amo calado,
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz.
Nós somos medo e desejo,
Somos feitos de silêncio e sons,
Tem certas coisas que eu não sei dizer...
Se não houvesse o silêncio
Não haveria luz
Se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...
Cada voz que canta o amor não diz
Tudo o que quer dizer,
Tudo o que cala fala
Mais alto ao coração.
Silenciosamente eu te falo com paixão...
Eu te amo calado,
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz.
Nós somos medo e desejo,
Somos feitos de silêncio e sons,
Tem certas coisas que eu não sei dizer...
[1]
IN: O Correio da UNESCO, Rio de
Janeiro, ano 11, no 9, p. 4-6, tradução de Maria Lucia L. V. de Magalhães, setembro de 1983. Anthony Burgess (1917-1993) foi
escritor e crítico literário. Seu livro mais conhecido éLaranja Mecânica (A ClocksworkOrange),
de 1962.
[2]IN:
O GLOBO, sábado, 20 de outubro de 2007, p. 7. Frei Betto (1944 - ), nascido no
Brasil ( Minas Gerais), é escritor. Sua obra mais famosa é Batismo de sangue, de 1982.
[3] Os
cartuxos são uma ordem religiosa que prega a clausura monástica e a contemplação.
[4]
IN: Folder da exposição O silêncio e o
tempo. Abigail VasthiSchlemm, nascida em Minas Gerais, é artista plástica.
[5]
IN: http://letras.mus.br/arnaldo-antunes/91708/
Acesso em 24 de janeiro de 2014.
[6]
IN: <: http://www.vagalume.com.br/lulu-santos/certas-coisas.html#ixzz2rEXU2500> Acesso em 23 de janeiro de 2014.