Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Centro de
Filosofia e Ciências Humanas
Faculdade de
Educação
Curso de
Pedagogia
Departamento
de Didática
Disciplina:
Leitura e Produção de Textos em Educação
Código: EDD
614
Professor Dr.
Marcelo Macedo Corrêa e Castro
Tema: Práticas sociais de leitura e de escrita
1. Práticas
sociais de leitura e de escrita
Historicamente, ler e escrever constituem práticas
indispensáveis para o desenvolvimento da civilização humana. Para iniciar por
um dimensionamento temporal das diversas práticas sociais de leitura e de
escrita, penso que vale a pena mencionar alguns marcadores de tempo para o seu
desenvolvimento, que serão úteis para situar o macrocenário em que estamos
entrando neste momento da disciplina.
Sempre lembrando que datações são estimativas
sujeitas a muitas variações, começamos por situar que a espécie humana existe
como espécie separada há cerca de dois milhões de anos. O Homo sapiens, sua
versão mais desenvolvida, teria cerca de 350 mil anos. A civilização, por seu
turno, existiria há 10 mil anos.
A escrita existiria desde aproximadamente 3.500 a.
C., tendo percorrido algumas fases: a pictórica, que se valia de desenhos do
que se queria representar, os chamados pictogramas; a ideográfica, que empregava basicamente
figuras e imagens associadas a ideias, os ideogramas; a silábica, que se valia
de sílabas para representar sons; e a alfabética, com letras. Esta última teria
se iniciado por volta de 1.100 a.C., quando os fenícios teriam produzido o primeiro
alfabeto, por meio da chamada fissão silábica.
A biblioteca mais antiga do mundo seria a de
Alexandria, criada no Egito, no século III a.C.
Já o papel é um artefato datado de 100 d.C. A primeira universidade, de
Bolonha, foi fundada em 1214 e a imprensa com tipos móveis só entraria em cena
em 1453.
Há no mundo cerca de 6.900 idiomas. Da população
mundial, estimada em 7 bilhões e meio de pessoas, cerca de 280 milhões são
usuários de Língua Portuguesa, dos quais 210 milhões são brasileiros. Desses
últimos, 11,3 milhões são analfabetos.
A que vêm tantos dados? Trata-se de uma forma de
mostrar a dimensão e a complexidade da chamada cultura escrita, cujo
desenvolvimento se confunde com o próprio processo civilizatório da humanidade.
E, ao mesmo tempo, de propor uma visão mais ampliada das práticas de ler e de
escrever.
Em nossa sociedade, a escrita tem servido a muitos
propósitos e cumprido funções diversas. A escrita serve de registro, de
memória, de comprovação. É o caso de certidões, diários, contratos, atestados,
por exemplo. Serve também como forma de exposição e transmissão de informações
e de ideias, como podemos constatar em reportagens e artigos de opinião. Para
não nos estendermos muito, podemos acrescentar que serve igualmente para a
expressão de sentimentos e a fabulação, como vemos na poesia e na prosa
literária.
A escrita é uma prática que está nos bilhetes que
deixamos para quem coabita conosco, na lista de compras que preparamos para não
nos esquecermos de nenhum produto na hora em que estivermos no mercado, na
receita do prato que pretendemos preparar para a refeição de logo mais, nas
mensagens trocadas nas redes sociais em todos os momentos de deslocamento em
meios de transporte públicos.
E está igualmente nos registros que fazemos sobre
nossos mais íntimos sentimentos e nos tratados que produzimos para defender
pontos de vista ou nos detalhados relatos com que apresentamos nossas
investigações.
Escrevemos para registrar, comprovar, transmitir,
comunicar, expressar. Escrevemos para manter vivo o processo civilizatório.
A mesma diversidade de alcances serve também para
tratarmos da leitura. Uma primeira distinção importante sobre a prática de ler
consiste em distinguir duas dimensões básicas da leitura: a da compreensão e a
da interpretação. De forma bem simples, pode-se dizer que a primeira trabalha
mais com o nível da decodificação e dos conhecimentos de mundo compartilhados,
o que remete ao plano dos significados pactuados entre os usuários de uma
língua. Já a segunda lida com a associação do dito e compreendido com o não
dito, remetendo ao nível dos sentidos produzidos por cada indivíduo.
Para evitar uma dispersão improdutiva, destaco
quatro tipos de leituras que Geraldi (1990) identifica em nossas práticas
sociais, porque estão mais presentes em nossa formação, especialmente na
escolar.
A primeira é a leitura como forma de acessar
conhecimentos, informações, ideias. A segunda é a leitura como estudo do texto,
que será bastante praticada nesta disciplina. A terceira é a leitura como
pretexto, na medida em que serve para a realização de outros movimentos. E a
quarta é aquela à qual o referido autor chama de leitura para fruição do texto.
Para Lajolo (2004,
p.7), “Ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive. Se ler
livros geralmente se aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem
por aí, na chamada escola da vida”. A autora também destaca uma ampliação
importante do conceito de leitura, que coloca o movimento de ler para além da
decodificação de textos verbais: “Do mundo da leitura à leitura do mundo, o
trajeto se cumpre sempre, refazendo-se, inclusive, por um vice-versa que
transforma a leitura em prática circular e infinita (LAJOLO, 2004, p.7).
De acordo com
Castro, Amorim e Cerdas (2018, p.259), Soares (2002) entende que “há uma
dimensão individual e outra social do letramento, e que este último, por seu
turno, poderia ser de caráter liberal ou progressista, por ela denominado de
letramento fraco, ou de cunho radical ou revolucionário, que a autora designou
como letramento forte”. Ainda segundo os mesmos autores, para Brito (2002),
essa diferença de percepções de letramento estaria ligada a “disputas
político-ideológicas, uma vez que serviria para demarcar a oposição entre
concepções de ensino-aprendizagem: de um lado, as vertentes mais técnicas e
pretensamente apolíticas; de outro, as que entendem o processo em sua dimensão
socioeconômica e/ou histórico-cultural” (CASTRO, AMORIM e CERDAS, 2018, p.259).
Assim como a escrita,
portanto, a leitura constitui uma prática indispensável para se estar no mundo,
seja para o nosso funcionamento social, seja para a fruição, seja a formação de
consciência, seja ainda para um pouco ou um muito das três funções.
2. Pressupostos
para o trabalho nesta disciplina
Lemos e escrevemos o
tempo todo, em muitos suportes e com finalidades diversas. É uma sociedade
totalmente ancorada na palavra escrita, da qual depende para existir em suas
múltiplas dimensões e movimentos.
Nesta disciplina, assumimos que muitos estudantes
brasileiros chegam ao ensino superior com um domínio de leitura e de escrita
que costuma não ser suficiente para dar conta de ler e escrever o que lhes
pedem os professores nos cursos de graduação.
Além disso, por uma série de condições que têm a
ver principalmente com o caráter seletivo, e mesmo elitista, com que
historicamente se desenvolveram as universidades brasileiras, os problemas de
leitura e de escrita não têm sido sistematicamente enfrentados pelas
instituições de ensino superior.
Desde os anos 1990, todavia, tem crescido a
quantidade de estudos e de intervenções práticas relacionadas a entender e a enfrentar
as dificuldades de leitura e de escrita que os graduandos apresentam. Creio que
esse esforço tem a ver especialmente com a democratização dos cursos superiores
e a tomada de consciência do seu papel formador por parte dos seus professores.
Muitos caminhos podem ajudar no enfrentamento
dessas dificuldades com a leitura e a produção de textos estranhos ao universo
com o qual os estudantes estavam habituados na Educação Básica. Em nossa
disciplina, vamos assumir que, independentemente do grau de dificuldade
encontrado por cada estudante, será preciso reconstruir as relações até então
existentes com os atos de ler e de escrever. Para tanto, passo a apresentar
algumas questões que têm a ver com essa necessária reconstrução.
2.1
Processos de aprendizagens incluem ações
de reposicionamento diante de teorias e práticas
Adoto como princípio
para as ações de ensino que um processo de aprendizagem inclui sempre, em maior
ou menor grau, movimentos que nos levem a um novo posicionamento teórico e/ou
prático diante do objeto de estudo. Embora, no senso comum, esteja propagada a
convicção de que aprender significa acrescentar conhecimentos aos que já se
possui, entendo que, de fato, o que acontece é uma reorganização ou
reconfiguração dos nossos conhecimentos sobre algo. Mais do que isso: é um
reposicionamento que fazemos em nossa relação com aquele objeto.
O resultado desse
movimento se faz notar sob a forma de uma relação melhor, mais produtiva, mais
satisfatória com o objeto de aprendizagem, mas o processo que leva até esse
resultado muitas vezes exige que abandonemos nossas zonas de conforto, o que
nem sempre se faz com facilidade.
A proposta que faço
nesta disciplina aposta na capacidade e na disposição dos estudantes para a
realização desse movimento de reorganização. Será preciso estar disposto a
encarar a leitura e a escrita a partir de novos olhares, alimentados por novas
concepções. Se você pretende melhorar suas práticas, provavelmente
precisará reconstruir algumas, com as quais está habituado, e considerar, em
suas escolhas, aspectos que até então não estavam presentes em suas tomadas de
decisão.
2.2 Ler
e escrever têm especificidades
A escrita se desenvolve junto com a leitura, mas
cada uma tem seu percurso e suas especificidades. Este é um pressuposto que se
adota no desenvolvimento da disciplina Leitura e Produção de Textos em
Educação.
Não se pode pensar em produtores de textos que não
sejam leitores. Isso, no entanto, não significa que um grau de domínio da
leitura leve necessariamente ao mesmo grau de proficiência na escrita.
Este pressuposto serve para que você busque se
reposicionar diante da cultura escrita com uma compreensão que lhe permita
desenvolver estratégias próprias para a leitura e a escrita. Nem sempre o que
funciona para uma dá certo com a outra.
2.3 Ler
e escrever são processos
Há uma perspectiva bastante difundida em nossa
sociedade, que costumamos absorver na Educação Básica, de que a leitura e a
escrita se produzem de uma forma automática, em uma espécie de sucessão de
ações cognitivas dispostas de forma linear: Leio > Compreendo; Penso >
Escrevo.
Na verdade, tanto para ler quanto para escrever há
muito mais em jogo. Não se trata de acionar mecanismos lógicos e conhecimentos
de mundo a partir de palavras e para chegar a elas. Trata-se de algo mais
complexo, que inclui etapas e movimentos diversos, muitos dos quais precisam
ser refeitos várias vezes, a fim de que se alcance a leitura e a produção
textual pretendida.
Esse deslocamento em relação ao senso comum ajuda a
entender que leitura e escrita se constituem como processos com complexidades
próprias. Quando alguém manifesta desconforto com a qualidade da sua leitura e
da sua escrita, a primeira hipótese a considerar é: Até que ponto essa pessoa
está lidando com o desafio de ler e de escrever a partir de uma compreensão das
suas complexidades? Será que o desconforto não se origina de uma compreensão
reduzida, que faz a pessoa pensar que as dificuldades são dela, e não inerentes
aos processos?
Propõe-se, então, que se adote como pressuposto
que ler e escrever não são tarefas simples, que podem ser feitas a qualquer
momento, em quaisquer circunstâncias, com resultados satisfatórios.
Outros pressupostos poderiam ser adotados, mas
considerei suficiente apontar esses três, para o início de um trabalho que
promoverá movimentos de mudança de atitudes e de práticas. Em síntese, proponho
que trabalhemos com esses princípios teórico-práticos: (1) aprendizagens dependem de mudanças de
posicionamento; (2) as práticas de leitura e de escrita se desenvolvem com
percursos que podem e devem estar articulados, mas que têm autonomia; (3) ler e
escrever são processos que demandam movimentos e intervenções conscientes da
nossa parte, não se lê nem se escreve de forma automática.
Caba uma última, mas não menos importante, base para as nossas ações. Trabalhamos
com a convicção de que as pessoas que chegaram ao curso superior sabem ler e
escrever. O desafio que esta disciplina propõe tem a ver com o desenvolvimento
dessas capacidades e do seu uso dentro do domínio discursivo da academia. Não
se trata, pois, de zerar percurso nem de reparar defeitos, mas sim de seguir
aperfeiçoando habilidades. Neste sentido, o maior desafio para se alcançar o
domínio das práticas de leitura e de escrita próprias do mundo acadêmico
consiste em tornar-se um efetivo participante da comunidade discursiva em que
essas práticas ocorrem.
Referências
BRITTO, L. P. L. À sombra do caos: ensino de língua x tradição
gramatical. Campinas:
Mercado das Letras, 2002.
CASTRO, M.M.C. e.; AMORIM, R.M.A.; CERDAS, L. O Conceito de letramento
e as práticas de alfabetização. IN: Revista Contemporânea de Educação.
v. 13, n. 27, maio/ago. 2018. http://dx.doi.org/10.20500/rce.v13i27.16691
GERALDI, João Wanderley. Prática da Leitura de Textos na Escola. IN:
GERALDI, João Wanderley (Org.). O
Texto na sala de aula:
leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1990.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da
leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2004.
SOARES, M. B. Língua escrita,
sociedade e cultura: Relações, dimensões e perspectivas. IN: Revista
Brasileira de Educação. Set/Out/Nov/Dez 1995 N º 0. http://anped.tempsite.ws/novo_portal/rbe/rbedigital/RBDE0/RBDE0_03_MAGDA_BECKER_SOARES.pdf
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 3.ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.