quarta-feira, 18 de abril de 2018

Aula Os silêncios


Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Faculdade de Educação
Curso de Pedagogia
Disciplina Didática da Língua Portuguesa – EDD361
Professor Doutor Marcelo Macedo Corrêa e Castro
Aula: Os silêncios

Texto 1: O animal que fala (Anthony Burgess)[1]
Em grego chama-se o homem de zoom phomanta, animal que fala. O que diferencia a humanidade dos seres irracionais é sua capacidade de construir um sistema de signos audíveis para representar não só suas ideias e sentimentos sobre o mundo exterior como também o próprio mundo exterior. Alguém logo dirá que certas aves falam, e algumas muito bem, como os mainás. Que se pode ensinar aos chimpanzés algumas palavras e umas poucas estruturas simples. Mas só os seres humanos distinguem-se pela faculdade de criar línguas inteiras, e não apenas imitar partes delas ou manipular um pequeno número de substantivos e verbos. Quando um animal começou a falar, este animal se autodenominou homem.
Todostemos uma ideia vaga, e totalmente falsa, de um homem muito primitivo emitindo grunhidos e uivos como Tarzan, enquanto acompanha a melodia rude desses vocábulos com um martelar de golpes na caixa do peito. Mas é quase certo que a linguagem humana não começou assim. Começou como uma algaravia contínua, e provavelmente na escuridão. A escuridão é sempre assustadora, especialmente quando se está só, e o homem aprendeu muito cedo a preservar o sentido de sociedade, a convicção tranquilizadora de não estar só quando o sol já se pôs, a lua ainda não surgiu e a caverna está às escuras. A fala, sem dúvida, precedeu a descoberta do fogo. Ainda costumamos usar a palavra, não para transmitir mensagens ou expressar sentimentos, mas para estabelecer e manter o contato humano.
O antropólogo Malinowski chamava esse tipo de discurso social de “comunhão fática”, do grego phatos, falado. O ato da fala, do discurso, tem como primeira finalidade a sociabilidade. Não precisa ter um significado, mas sim ser contínuo. Numa reunião social nada é mais embaraçoso que o silêncio prolongado: parece demonstrar que a sociabilidade falhou, e é quase sempre quebrado por mais de uma pessoa, todas falando ao mesmo tempo – desculpe-me – perdão – fale você – não, você primeiro – e o que se diz tem muito menos importância do que o fato de alguém ter dito alguma coisa, qualquer coisa. Todos suspiram aliviados.
Não temos meio de saber como era a linguagem, por exemplo, do homem da Idade da Pedra, mas sabemos alguma coisa dessa língua antiga, o indo-europeu ou ariano, pois sua estrutura e parte do seu vocabulário, muito mudados, sobreviveram nas línguas que dele descendem, entre as quais se encontra a maioria das línguas europeias. O indo-europeu parece ter sido uma língua complexa, gramaticalmente rica, muito diferente do malaio ou do chinês, e não há dúvida de que quanto mais retrocedemos no estudo linguístico, mais complexidade encontramos.
(...)
Temos de confessar que ignoramos quase por completo as origens da linguagem humana, mas sabemos que o processo evolutivo é responsável pela espécie que chamamos homem. E quando a linguagem surgiu já estava em pleno desenvolvimento: não era um tatear hesitante para chegar a uma maior articulação. A simbolização do mundo exterior (que abrange nosso próprio corpo) foi a chave da criação de mundos interiores – ciências e tecnologias. A linguagem é nosso bem mais precioso. Seria sensato refletir sobre seus mistérios e apreciar o milagre que ela representa. Mas nunca chegaremos a compreendê-la. O chinês, o hindi e o inglês, sim. A linguagem, não.

Texto 2: Direito ao silêncio (Frei Betto)[2]
Há demasiados ruídos à nossa volta. O coração sobressalta, os nervos afloram, a mente atordoa-se. É o televisor ligado quase o tempo todo, o fluxo incessante de imagens sugando-nos num carrossel de flashes.
O rádio em monólogo inclemente, a música rítmica desprovida de melodia, o som alojado nos orifícios auditivos, o telefone trinando supostas urgências, o celular a invadir todos os espaços, suas musiquetas de chamada destoando em teatros, cinemas, templos, cerimônias e eventos, seus usuários nele dependurados pelas orelhas, publicitando em voz alta conversas privadas.
De todos os lados sobem ruídos: da construção civil vizinha, do latido dos cães, dos carros na rua e das aeronaves que cortam o espaço, das motos estridentes, do anunciante desaforado em seu carro de som, do apito fabril disciplinando horários.
Tantos ruídos causam tamanho prejuízo à saúde humana que o exército usamericano criou, em sua sanha assassina, um arsenal de “projéteis sonoros”, capazes de produzir sons de 140 decibéis. Bastam 45 para impedir o sono. O rumor do tráfego na esquina de uma avenida central atinge 70 decibéis. Aos 85, produz-se uma lesão auditiva. Elevado para 120, o som provoca dor aguda nos ouvidos. Imagine-se, pois, o que significa essa tecnologia de tortura a 140 decibéis!
Nosso silêncio não é quebrado apenas por ruídos auditivos. Agridem-nos também os visuais. Assim como o silêncio da zona rural ou de uma igreja nos impregna de paz, levei um choque ao visitar, anos atrás, Praga antes da queda do muro de Berlim. Não havia outdoors. A cidade não se escondia atrás de anúncios. A poluição visual era zero, permitindo contemplar a beleza barroca da terra de Kafka.
Nas cidades brasileiras, subjugadas pelo império do mercado, somos vorazmente engolidos pela proliferação de propagandas, exceto a capital paulista, agora em fase de despoluição visual por iniciativa da prefeitura.
Sem silêncio, ficamos vulneráveis, expostos à voracidade do mercado, a subjetividade esgarçada, a epiderme eriçada em potencial violência. Contra esse estado de coisas, o professor Stuart Sim, da Universidade de Sunderland, na Inglaterra, acaba de lançarManifesto pelo Silêncio. Sem ele perdemos a nossa capacidade de raciocinar, ouvir a voz interior, aprofundar a vida espiritual, amar além do jogo erótico meramente epidérmico.
Quando um casal de noivos me procura, interessado em preparar-se para o matrimônio, costumo indagar se os dois são capazes de ficar juntos uma hora, em silêncio, sem que um se sinta incomodado. Caso contrário, duvido que estejam em condições de uma saudável vida a dois, pois o respeito ao silêncio do outro é um dos atributos da confiança amorosa.
Assisti ao filme “O grande silêncio”, do diretor alemão P. Gröning, que nos convida a penetrar a vida de uma comunidade cartuxa[3] nos Alpes franceses. Nenhuma palavra no decorrer de três horas de filme, exceto o canto gregoriano das liturgias monásticas e o bater do sino. Um convite à mais desafiadora viagem: ao mais profundo de si mesmo.
Quem ousa, sabe que lá se desdobra um Outro que, por sua vez, espelha nossa verdadeira identidade. Viagem que tem como veículo privilegiado a meditação. Na fase inicial, é tão árduo quanto escalar montanha para quem não está acostumado ao alpinismo. Porém, em certo momento, é como se u’a mão invisível nos elevasse, tornando a subida suave e agradável.
Só então se descobre que, no imponderável do Mistério, não se sobe, se desce, mergulha-se em si mesmo para vir à tona, do outro lado de nosso ser, naquele Outro silenciosamente presente em nossas vidas e na tessitura do Universo. Aqui a palavra se cala e o silêncio se faz epifania.

Texto 3: O Silêncio (Abigail VasthiSchlemm)[4]
Eu sou pintora. Só pintora. Eu pinto só o que gosto. Nunca pretendi interferir, nem remotamente, nos destinos da humanidade. Com a minha arte somente procuro a beleza e poesia possíveis.
A minha pintura não me encaixa em escolas. Uso, sem cerimônia, todas as técnicas e todos os recursos utilizados por todas elas. Mas, mesmo assim, pinto de modo pessoal e verdadeiro, sem abrir mão da minha criatividade, do meu prazer e da minha liberdade.
Meus temas, eu os pesco na minha própria história, na minha mitologia particular, nos meus rituais domésticos, ou em alguns momentos, vividos e perdidos ao longo do tempo. Meu trabalho é um conjunto de formas e cores que, embora nada diga de novo, traz em si, como num ponto de interrogação, um silêncio pesado, uma pergunta não respondida.
Minhas personagens, às vezes, se confundem comigo. São concentradas, quietas, caladas, fora do ar e do tempo, como quem já não espera. Quase sempre estão de costas para o mundo. Seu universo é pessoal.
Mas elas são instigantes, envolvem, provocam, seduzem. Seu silêncio é profundo, patético e profético.
Seu silêncio é o silêncio que denuncia a ausência das mulheres na história da humanidade.

Texto 4: O Silêncio (Arnaldo Antunes)[5]

antes de existir computador existia tevê
antes de existir tevê existia luz elétrica
antes de existir luz elétrica existia bicicleta
antes de existir bicicleta existia enciclopédia
antes de existir enciclopédia existia alfabeto
antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão de semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
homem pedra planta bicho flor
luz elétrica tevê computador
batedeira, liquidificador
vamos ouvir esse silêncio meu amor
amplificado no amplificador
do estetoscópio do doutor
no lado esquerdo do peito, esse tambor

Texto 5: Certas Coisas (Lulu Santos e Nelson Mota)[6]
Não existiria som
Se não houvesse o silêncio
Não haveria luz
Se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...

Cada voz que canta o amor não diz
Tudo o que quer dizer,
Tudo o que cala fala
Mais alto ao coração.
Silenciosamente eu te falo com paixão...

Eu te amo calado,
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz.
Nós somos medo e desejo,
Somos feitos de silêncio e sons,
Tem certas coisas que eu não sei dizer
...





[1] IN: O Correio da UNESCO, Rio de Janeiro, ano 11, no 9, p. 4-6, tradução de Maria Lucia  L. V. de Magalhães, setembro de  1983. Anthony Burgess (1917-1993) foi escritor e crítico literário. Seu livro mais conhecido éLaranja Mecânica (A ClocksworkOrange), de 1962.
[2]IN: O GLOBO, sábado, 20 de outubro de 2007, p. 7. Frei Betto (1944 - ), nascido no Brasil ( Minas Gerais), é escritor. Sua obra mais famosa é Batismo de sangue, de 1982.
[3] Os cartuxos são uma ordem religiosa que prega a clausura monástica e a contemplação.
[4] IN: Folder da exposição O silêncio e o tempo. Abigail VasthiSchlemm, nascida em Minas Gerais, é artista plástica.
[5] IN: http://letras.mus.br/arnaldo-antunes/91708/ Acesso em 24 de janeiro de 2014.