quarta-feira, 5 de agosto de 2020

PLE -Tema 2 - Práticas sociais de leitura e de escrita


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Faculdade de Educação

Curso de Pedagogia

Departamento de Didática

Disciplina: Leitura e Produção de Textos em Educação

Código: EDD 614

Professor Dr. Marcelo Macedo Corrêa e Castro

Período Letivo Excepcional – 24 de agosto a 11 de novembro de 2020

 

Texto do Tema 2 – Práticas sociais de leitura e de escrita

 

1.       Práticas sociais de leitura e de escrita

Historicamente, ler e escrever constituem práticas indispensáveis para o desenvolvimento da civilização humana. Para iniciar por um dimensionamento temporal das diversas práticas sociais de leitura e de escrita, penso que vale a pena mencionar alguns marcadores de tempo para o seu desenvolvimento, que será útil para situar o macrocenário em que estamos entrando neste momento da disciplina.

Sempre lembrando que datações são estimativas sujeitas a muitas variações, começamos por situar que a espécie humana existe como espécie separada há cerca de dois milhões de anos. O Homo sapiens, sua versão mais desenvolvida, teria cerca de 350 mil anos. A civilização existiria há 10 mil anos.

A escrita existiria desde aproximadamente 3.500 a. C., tendo percorrido algumas fases: a pictórica, que se valia de desenhos do que se queria representar, os chamados pictogramas;  a ideográfica, que empregava basicamente figuras e imagens associadas a ideias, os ideogramas; a silábica, que se valia de sílabas para representar sons; e a alfabética, com letras. Esta última teria se iniciado por volta de 1.100 a.C., quando os fenícios teriam produzido o primeiro alfabeto, por meio da chamada fissão silábica.

A biblioteca mais antiga do mundo seria a de Alexandria, criada no Egito, no século III a.C.  Já o papel é um artefato datado de 100 d.C. A primeira universidade, de Bolonha, foi fundada em 1214 e a imprensa com tipos móveis só entraria em cena em 1453.

Há no mundo cerca de 6.900 idiomas. Da população mundial, estimada em 7 bilhões e meio de pessoas, cerca de 280 milhões são usuários de Língua Portuguesa, dos quais 210 milhões são brasileiros. Desses últimos, 11,3 milhões são analfabetos.

A que vêm tantos dados? Trata-se de uma forma de mostrar a dimensão e a complexidade da chamada cultura escrita, cujo desenvolvimento se confunde com o próprio processo civilizatório da humanidade. E, ao mesmo tempo, de propor uma visão mais ampliada das práticas de ler e de escrever.

Em nossa sociedade, a escrita tem servido a muitos propósitos e cumprido funções diversas. A escrita serve de registro, de memória, de comprovação. É o caso de certidões, diários, contratos, atestados, por exemplo. Serve também como forma de exposição e transmissão de informações e de ideias, como podemos constatar em reportagens e artigos de opinião. Para não nos estendermos muito, podemos acrescentar que serve igualmente para a expressão de sentimentos e a fabulação, como vemos na poesia e na prosa literária.

A escrita é uma prática que está nos bilhetes que deixamos para quem coabita conosco, na lista de compras que preparamos para não nos esquecermos de nenhum produto na hora em que estivermos no mercado, na receita do prato que pretendemos preparar para a refeição de logo mais, nas mensagens trocadas nas redes sociais em todos os momentos de deslocamento em meios de transporte públicos.

E está igualmente nos registros que fazemos sobre nossos mais íntimos sentimentos e nos tratados que produzimos para defender pontos de vista ou nos detalhados relatos com que apresentamos nossas investigações.

Escrevemos para registrar, comprovar, transmitir, comunicar, expressar. Escrevemos para manter vivo o processo civilizatório.

A mesma diversidade de alcances serve também para tratarmos da leitura. Uma primeira distinção importante sobre a prática de ler consiste em distinguir duas dimensões básicas da leitura: a da compreensão e a da interpretação. De forma bem simples, pode-se dizer que a primeira trabalha mais com o nível da decodificação e dos conhecimentos de mundo compartilhados, o que remete ao plano dos significados pactuados entre os usuários de uma língua. Já a segunda lida com a associação do dito e compreendido com o não dito, remetendo ao nível dos sentidos produzidos por cada indivíduo.

Para evitar uma dispersão improdutiva, destaco quatro tipos de leituras que Geraldi (1990) identifica em nossas práticas sociais, porque estão mais presentes em nossa formação, especialmente na escolar.

A primeira é a leitura como forma de acessar conhecimentos, informações, ideias. A segunda é a leitura como estudo do texto, que será bastante praticada nesta disciplina. A terceira é a leitura como pretexto, na medida em que serve para a realização de outros movimentos. E a quarta é aquela à qual o referido autor chama de leitura para fruição do texto.

Para Lajolo (2004, p.7), “Ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive. Se ler livros geralmente se aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem por aí, na chamada escola da vida”. A autora também destaca uma ampliação importante do conceito de leitura, que coloca o movimento de ler para além da decodificação de textos verbais: “Do mundo da leitura à leitura do mundo, o trajeto se cumpre sempre, refazendo-se, inclusive, por um vice-versa que transforma a leitura em prática circular e infinita (LAJOLO, 2004, p.7).

De acordo com Castro, Amorim e Cerdas (2018, p.259), Soares (2002) entende que “há uma dimensão individual e outra social do letramento, e que este último, por seu turno, poderia ser de caráter liberal ou progressista, por ela denominado de letramento fraco, ou de cunho radical ou revolucionário, que a autora designou como letramento forte”. Assim segundo os mesmos autores, para Brito (2002), essa diferença de percepções de letramento estaria ligada a “disputas político-ideológicas, uma vez que serviria para demarcar a oposição entre concepções de ensino-aprendizagem: de um lado, as vertentes mais técnicas e pretensamente apolíticas; de outro, as que entendem o processo em sua dimensão socioeconômica e/ou histórico-cultural” (CASTRO, AMORIM e CERDAS, 2018, p.259).

Assim como a escrita, portanto, a leitura constitui uma prática indispensável para se estar no mundo, seja para o nosso funcionamento social, seja para a fruição, seja a formação de consciência, seja ainda para um pouco ou um muito das três funções.

2.       Pressupostos para o trabalho nesta disciplina

Lemos e escrevemos o tempo todo, em muitos suportes e com finalidades diversas. É uma sociedade totalmente ancorada na palavra escrita, da qual depende para existir em suas múltiplas dimensões e movimentos.

Nesta disciplina, assumimos que muitos estudantes brasileiros chegam ao ensino superior com um domínio de leitura e de escrita que costuma não ser suficiente para dar conta de ler e escrever o que lhes pedem os professores nos cursos de graduação.

Além disso, por uma série de condições que têm a ver principalmente com o caráter seletivo, e mesmo elitista, com que historicamente se desenvolveram as universidades brasileiras, os problemas de leitura e de escrita não têm sido sistematicamente enfrentados pelas instituições de ensino superior.

Desde os anos 1990, todavia, tem crescido a quantidade de estudos e de intervenções práticas relacionadas a entender e a enfrentar as dificuldades de leitura e de escrita que os graduandos apresentam. Creio que esse esforço tem a ver especialmente com a democratização dos cursos superiores e a tomada de consciência do seu papel formador por parte dos seus professores.

Muitos caminhos podem ajudar no enfrentamento dessas dificuldades com a leitura e a produção de textos estranhos ao universo com o qual os estudantes estavam habituados na Educação Básica. Em nossa disciplina, vamos assumir que, independentemente do grau de dificuldade encontrado por cada estudante, será preciso reconstruir as relações até então existentes com os atos de ler e de escrever. Para tanto, passo a apresentar algumas questões que têm a ver com essa necessária reconstrução.

2.1   Processos de aprendizagens incluem ações de reposicionamento diante de teorias e práticas

Adoto como princípio para as ações de ensino que um processo de aprendizagem inclui sempre, em maior ou menor grau, movimentos que nos levem a um novo posicionamento teórico e/ou prático diante do objeto de estudo. Embora, no senso comum, esteja propagada a convicção de que aprender significa acrescentar conhecimentos aos que já se possui, entendo que, de fato, o que acontece é uma reorganização ou reconfiguração dos nossos conhecimentos sobre algo. Mais do que isso: é um reposicionamento que fazemos em nossa relação com aquele objeto.

O resultado desse movimento se faz notar sob a forma de uma relação melhor, mais produtiva, mais satisfatória com o objeto de aprendizagem, mas o processo que leva até esse resultado muitas vezes exige que abandonemos nossas zonas de conforto, o que nem sempre se faz com facilidade.

A proposta que faço nesta disciplina aposta na capacidade e na disposição dos estudantes para a realização desse movimento de reorganização. Será preciso estar disposto a encarar a leitura e a escrita a partir de novos olhares, alimentados por novas concepções. Se você pretende melhorar suas práticas, provavelmente precisará reconstruir algumas, com as quais está habituado, e considerar, em suas escolhas, aspectos que até então não estavam presentes em suas tomadas de decisão.

2.2   Ler e escrever têm especificidades

A escrita se desenvolve junto com a leitura, mas cada uma tem seu percurso e suas especificidades. Este é um pressuposto que se adota no desenvolvimento da disciplina Leitura e Produção de Textos em Educação.

Não se pode pensar em produtores de textos que não sejam leitores. Isso, no entanto, não significa que um grau de domínio da leitura leve necessariamente ao mesmo grau de proficiência na escrita.

Este primeiro pressuposto serve para que você busque se reposicionar diante da cultura escrita com uma compreensão que lhe permita desenvolver estratégias próprias para a leitura e a escrita. Nem sempre o que funciona para uma dá certo com a outra.

2.3   Ler e escrever são processos

Há uma perspectiva bastante difundida em nossa sociedade, que costumamos absorver na Educação Básica, de que a leitura e a escrita se produzem de uma forma automática, em uma espécie de sucessão de ações cognitivas dispostas de forma linear: Leio > Compreendo; Penso > Escrevo.

Na verdade, tanto para ler quanto para escrever há muito mais em jogo. Não se trata de acionar mecanismo lógicos e conhecimentos de mundo a partir de palavras e para chegar a elas. Trata-se de algo mais complexo, que inclui etapas e movimentos diversos, muitos dos quais precisam ser refeitos várias vezes, a fim de que se alcance a leitura e a produção textual pretendida.

Esse deslocamento em relação ao senso comum ajuda a entender que leitura e escrita se constituem como processos com complexidades próprias. Quando alguém manifesta desconforto com a qualidade da sua leitura e da sua escrita, a primeira hipótese a considerar é: Até que ponto essa pessoa está lidando com o desafio de ler e de escrever a partir de uma compreensão das suas complexidades? Será que o desconforto não se origina de uma compreensão reduzida, que faz a pessoa pensar que as dificuldades são dela, e não inerentes aos processos?

Propõe-se, então, que se adote como pressuposto que ler e escrever não são tarefas simples, que podem ser feitas a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias, com resultados satisfatórios.

Outros pressupostos poderiam ser adotados, mas considerei suficiente apontar esses três, para o início de um trabalho que promoverá movimentos de mudança de atitudes e de práticas. Em síntese, proponho que trabalhemos com esses princípios teórico-práticos:  (1) aprendizagens dependem de mudanças de posicionamento; (2) as práticas de leitura e de escrita se desenvolvem com percursos que podem e devem estar articulados, mas que têm autonomia; (3) ler e escrever são processos que demandam movimentos e intervenções conscientes da nossa parte, não se lê nem se escreve de forma automática.

 

 

 

Referências

BRITTO, L. P. L. À sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical. Campinas:

Mercado das Letras, 2002.

CASTRO, M.M.C. e.; AMORIM, R.M.A.; CERDAS, L. O Conceito de letramento e as práticas de alfabetização. IN: Revista Contemporânea de Educação. v. 13, n. 27, maio/ago. 2018. http://dx.doi.org/10.20500/rce.v13i27.16691

GERALDI, João Wanderley. Prática da Leitura de Textos na Escola. IN: GERALDI, João Wanderley (Org.). O Texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1990.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2004.

SOARES, M. B. Língua escrita, sociedade e cultura: Relações, dimensões e perspectivas. IN: Revista Brasileira de Educação. Set/Out/Nov/Dez 1995 N º 0. http://anped.tempsite.ws/novo_portal/rbe/rbedigital/RBDE0/RBDE0_03_MAGDA_BECKER_SOARES.pdf

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

 

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